sábado, 30 de julho de 2011

Sobre a cinefilia

“Provalvemente a cinefilia, paixão íntima, vinda de forma vital e polêmica, só é capaz de descobrir sua história através desta ironia: falar de si como de um outro, o que assegura um certo distanciamento ao mesmo tempo que evoca um desejo de proximidade. A proximidade peculiar da vontade de construir um relato, o distanciamento necessário à escrita de uma história”.
(Antoine de Baecque, em Cinefilia, lançado no Brasil pela Cosac Naify)

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Gainsbourg, vida louca

Quando se pensa em Serge Gainsboug muita gente lembra de seu talento e sua audácia como compositor e cantor, influenciado por nomes lendários como Jacques Brel e Charles Aznavour. Mas para a maior parte do mundo, o que o mitificou foi a fama de conquistador serial de lindas mulheres, como Brigitte Bardot, Juliette Grècco e Jane Birkin. Com muita poesia e belas metáforas, o diretor Joann Sfar conseguiu unir essas duas pontas e ainda mostrar outros aspectos da vida dele em Gainsbourg, vie héroïque, que aqui virou Gainsbourg, o Homem que amava as Mulheres, título que serve, justamente, para chamar a atenção de quem conhece apenas esse lado.

Generalização à parte, Sfar usa da fantasia, mola-mestra de sua atividade principal como cartunista, para aproximar o protagonista da audiência. Na infância, o pequeno Lucien (ele se tornaria Serge bem mais tarde, por sugestão do músico Boris Vian) aparece acompanhado por um boneco grande, redondo, dotado de dois pares de braços e pernas, mas com as suas feições. Já na juventude, o ser roliço – sua consciência? – torna-se uma criatura magra, alta, de nariz e orelhas grandes. Ele é interpretado por Doug Jones, ator especializado em dar vida a seres fantásticos como o fauno do já clássico filme de Guillhermo del Toro e Abrahan Sapian, o homem-peixe da franquia Hellboy.



Mesmo sendo muito parecido, Eric Elmosnino não emula totalmente o charme do "feio-bonito-interessante-barraqueiro" do original. O mesmo pode-se dizer de Laetitia Casta, sem dúvida uma das mulheres mais lindas do mundo, mas cuja Brigitte Bardot nada mais faz que irritar o público (os homens creio que não), durante os poucos minutos em que aparece na tela. Outras atrizes em cena são Anna Mouglalis – que antes de Greccò já havia sido Coco Chanel e Simone de Beauvoir no cinema – e a britânica Lucy Gordon como Jane, o grande amor do cantor. Gordon não viu a película pronta: cometeu suicídio quando o material estava em fase de pós-produção.

As interpretações não primorosas, entretanto, não estragam o filme, que retrata com charme o ambiente habitado por Serge, dos anos da ocupação alemã, na Segunda Guerra, até o fim de seus dias, no início dos anos 90. As cenas em que o pequeno Lucien espia uma modelo nua numa aula de desenho de observação, e a que ele vai a um café com a mesma moça, encontra uma velha cantora e canta cançonetas de cabaré, pouco adequadas à sua idade, são das mais divertidas.

Como cinebiografista, o novato Sfar surpreende, ainda que como diretor de atores ainda tenha um longo universo a aprender. O encanto das canções do irreverente Gainsbourg, que passou a vida defendendo a ideia de que era possível fazer música popular e de qualidade enquanto seu pai cobrava dedicação ao estudos clássicos, já valem o ingresso. Os fãs se encantarão, seguramente. Já quem conhece pouco sua vida e obra pode gostar de conhecer a verve e o gosto pela polêmica de um dos grandes nomes da música contemporânea.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Deneuve em dois tempos

Carol é uma jovem belga que mora com a irmã mais velha em Londres e trabalha num salão de beleza, como manicure. Sua vida se resume a trabalhar, sair para almoçar, voltar para casa e ficar trancada no quarto olhando para as paredes. A cada dia, vai se tornando mais esquizofrênica, alheia a tudo, até surtar de vez. Já a dona de casa Susane nunca trabalhou: herdou a fábrica de guarda-chuvas do pai, agora administrada pelo marido que pouco lhe dá atenção e tem um caso com a secretária. Essas duas mulheres são vividas com maestria por Catherine Deneuve, em Repulsa ao Sexo (Roman Polanski, 1964) e Potiche (François Ozon, 2010). Revi o primeiro e assisti o segundo há alguns dias.

Repulsion (ou Repulsa ao Sexo, outro dos nomes ridículos que os distribuidores brasileiros calcam) é, para mim, uma das obras mais perturbadoras de Roman Polanski, ainda que não tenha a mesma classe e o bom acabamento de O Bebê de Rosemary. O diretor busca referências em Él e El Ángel Exterminador, ambos de Luis Buñuel e que retratam personalidades esquizóides, para compor o perfil psicológico de Carol, mas com alguns cacoetes típicos de filmes de suspense.



Filmado em branco e preto, faz de imagens fortes, como o coelho assado que a irmã de Carol prepara, mas não o serve, e que vai apodrecendo ao longo do filme, (numa dada cena, sua cabeça é encontrada na bolsa da jovem); as rachaduras nas paredes e nas ruas que tornam-se cada vez maiores; a sujeira e a poeira do apartamento um contraponto visual à deterioração mental da personagem. A cena em que, já no auge da loucura, a moça passa por um corredor cheio de mãos que a tocam e, logo depois, comete dois assassinatos, lembra muito a atmosfera de Psicose.

Aos 22 anos, Deneuve encarna a repulsa do título original de forma surpreendente. E não é só ao sexo, é à vida. Ela evita olhar para as pessoas nas ruas; foge do pretendente apaixonado e lava a boca com sabão ao ser beijada por ele; joga apetrechos do amante da irmã no lixo; come apenas migalhas de biscoitos velhos e dorme ao fazer as unhas de suas clientes. Quando finalmente enlouquece, parece encontrar a redenção.

François Ozon é um dos diretores mais versáteis de sua geração e, talvez por isso, um dos mais achincalhados pela crítica. Para mim seu grande mérito sempre foi justamente o que torna sua cinematografia questionável: a capacidade de ir do romance cafona de época à comédia fantástica. Potiche é um filme simpático, com uma história divertida mas com um forte apelo político, por tratar dos direitos e do espaço das mulheres na sociedade. Ambientado nos anos 70, tem um roteiro que garante algumas risadas e a presença de uma Deneuve arrebatadora.



As câmeras estão a serviço da atriz. Susane, a "esposa troféu", que só cuida do marido (o ótimo Fabrice Lucchini) e corre no bosque de roupa Adidas e lenço no cabelo, vai se tornando cada vez mais forte e bela ao assumir a fábrica da família, cujos funcionários entram em greve, quando o marido sofre um infarto suspeito.

Para ajudá-la na ingrata tarefa de trabalhar depois de tanto tempo apenas como rainha do lar, ela procura o sindicalista e político Maurice Babin (Gerard Depardieu). Pouco a pouco sabe-se que eles foram amantes e que a mulher está longe de ser perfeita e fiel, o que é o mais engraçado e irônico do filme. A sequência em que Susane chega para uma reunião com os líderes da greve, elegantemente vestida e falando como se estivesse com suas amigas num chá, é das mais cômicas.

Além da condução por excelentes diretores, o único ponto em comum entre ambas películas é a protagonista, que mesmo cheia de plásticas e beirando os 70 anos, conserva muito do frescor expressivo de Sevèrine, a bela da tarde de Buñuel, ou da Carol de Polanski. O olhar de Susane quando parece que tudo vai dar errado remonta às cenas em que Carol, confusa, acorda depois de cochilar no trabalho. Um brilho que o tempo, as produções questionáveis ou os maus diretores não apagam.